Transparência
Um pouco de serenidade

Um pouco de serenidade

Eu estudo sobre coronavírus desde o início da doença, mesmo antes dos casos surgirem no Brasil. Em janeiro foi mais por curiosidade e preocupação do acometimento de outros lugares fora da China. Depois por motivos acadêmicos (poder ensinar meus alunos e residentes), e também por obrigação profissional (lido diariamente com a doença). Um interesse científico, participando de pesquisas com pacientes graves com a doença. Aprendi e continuo aprendendo.

Se estamos numa guerra, eu estou bem no front, na UTI dedicada a pacientes comCOVID-19, onde a doença mostra toda a sua força e apresenta alta letalidade. Cada paciente que sai da UTI representa uma vitória e isso dá uma energia à equipe, já cansada. Mesmo vendo esse lado sombrio e grave, sei que essa infecção tem, na grande maioria dos casos, uma evolução leve, sem gravidade. Apenas 5% dos pacientes apresentam gravidade. Esse conhecimento deve-se a todo período que venho estudando a doença.

No início havia muita especulação sobre modalidades de tratamento. Hipóteses boas e outras muito pouco prováveis de vingar. Pela minha formação científica e exatamente por lidar com isso (como um especialista) sabia que o mais prudente era esperar dados mais robustos que comprovassem essas hipóteses. Uma a uma essas hipóteses foram se provando falhas. A mais alardeada desde março é a cloroquina e seus derivados. No início a decisão era de usar ou não uma terapia sem comprovação numa doença tão grave.

Agora essa não é a questão, pois já há inúmeros trabalhos científicos que categoricamente negam a eficácia da cloroquina. Há outros de baixa qualidade que afirmam seu efeito. Não é questão de estudos positivos versus negativos. Temos que analisar a qualidade desses estudos. Todos os bem realizados, bem desenhados, foram negativos. A dúvida de março já foi respondida.

Ainda assim um grupo barulhento de médicos e blogueiros defende o uso desta e de outras drogas mágicas. Isso é inadequado. Não é sequer ético, pois oferecem efeitos mágicos para pacientes assintomáticos e sabemos que 90% não terá nada! É vender um milagre que não existe, muitas vezes para quem nem precisaria. Esses grupos dizem que protocolos nas cidades X reduziram número de mortos. Isso não pode ser atribuído ao uso ou não uso de qualquer medicação. Essa afirmação fere princípios básicos da observação científica. Para afirmar isso precisaríamos de grupo controle, ou seja, um grupo sem usar a droga, entre outros cuidados científicos.

Mesmo que não entenda nada sobre o método científico, gostaria de saber o porquê um médico dedicado a salvar vidas não usaria essas medicações nos seus pacientes para evitar que eles ficassem grave? Eu mesmo fui acometido pela doença e não usei. Minha família, amigos íntimos não usaram pois não prescrevi. Qual seria o meu objetivo ao negar o benefício de algo que poderia ajudar as pessoas, e até mesmo a mim e familiares? Por que negar um tratamento eficaz? O motivo é simples: porque não funciona, não é eficaz. E a coisa mais honesta é ficar ao lado do paciente ao invés de prometer um tratamento falacioso. É usar todo o conhecimento e expertise e cuidar com zelo. Usar tudo que já aprendemos e que realmente funciona. Há tratamento específico? Exceto por 1 droga com efeitos promissores, que iniciamos no dia em que foi comprovado seu efeito, não há mais nada direcionado ao vírus. Isso não é inédito no coronavírus. Várias doenças não têm tratamento específico. Ainda assim há muita coisa para cuidar do paciente. E nós cuidamos. Passo por essa pandemia com serenidade e a tranquilidade de que estou fazendo de tudo (tudo que funciona), com respeito ao paciente e suas famílias.

 

Drº Rodrigo Biondi

Diretor Científico do ICDF

Brasilia, DF

04/07/2020

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